quinta-feira, 27 de agosto de 2009

# 173

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na primeira vez que ele se foi, deixou dor. o outro ficou tentando parecer forte, mas sua escuridão interna superava a do quarto em que se trancava.
nada mais parecia ser bom, era como um buraco negro sem fim, sem fundo, sem nada.
se sentia seco, doído, partido. e a sensação de vazio era transparente em seu olhar.

o que tinha ido, numa das artes do destino, acabou por voltar, e a felicidade atingiu o que tinha ficado novamente, como se estendesse os braços no abismo, e o alcançasse, puxando pelos dedos da mão esquerda, mas nesses braços de resgate era possível enxergar arranhões, hematomas...

ainda assim, ele se agarrou, e viveu novamente a paixão em seu estado intenso e pleno, como de costume, mesmo arranhado pela partida antiga do outro. ele vivia, sem vacilar, cada momento, como se devorasse os minutos.

e outra vez o outro se foi.

mas o que ficou, dessa vez, não sentiu aquela dor da outra vez, não sentiu aquela queimadura de lagarta de goiabeira. ele contemplou a ida do outro, enxergando de longe, e sem emoção, nada de choro e nem aperto no peito.

talvez porque já havia desmontado aquela figura sacra que tinha armado do que ia, talvez porque tivesse esgotado a paixão, talvez porque já esperava tal desfecho, talvez porque já não o queria mais, talvez, talvez, talvez..

enquanto o outro andava sem olhar pra trás, o que ficava colocava os fones no ouvido, virava de costas e saía cantando, com um sorriso no canto de boca: "...as coisas querem sorvete, maçã, banana, limão... as coisas querem ser coisas que na verdade não são..."


terça-feira, 18 de agosto de 2009

# 172

:: nada original


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Eu sei o que ele vai dizer
Já posso até prever qual vai ser o final
Você é como um filme ruim
Que eu já sei o fim e é nada original

Por que você não pára de ser
Aquele de quem tudo já sei?

E o mundo inteiro vai comemorar
O dia em que essa paz se acabar

Ou me mato, ou me mudo
Sem te avisar
Ou te bato, ou eu fujo,
Ou escapo desse mundo pra outro lugar

Eu sei o que ele vai escolher
É fácil perceber aonde quer chegar
E aquele seu velho clichê
Não vai me convencer que algo vai mudar

Por que você insiste em viver?
Desista de ser sempre você

E o mundo inteiro vai comemorar
O dia em que essa paz se acabar

Ou me mato, ou me mudo
Sem te avisar
Ou te bato, ou eu fujo,
Ou escapo desse mundo

Pra outro lugar

"

domingo, 16 de agosto de 2009

# 171

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e ao ouvir: "volta pro esgoto, baby, e vê se alguém te quer.", ele caiu.
claro, permaneceu de pé fisicamente, com o semblante intacto, a garrafa de heinecken na mão direita, e o ar de quem nada ouvira.
mas a verdade é que ele caiu, desmoronou-se, e não se levantaria tão cedo.


quinta-feira, 6 de agosto de 2009

# 170

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com um ar de serenidade ela contemplava aquela situação.
noutros tempos, seus olhos estariam inchados, sua boca seca e os olhos borrados.
agora não, apenas observava serena a história que acontecia sob seus olhos, e não esboçava qualquer reação. nenhuma.
talvez ainda esperasse que estivesse enganada, tinha um espírito terrivelmente crédulo, que por vezes lhe jogara em situações ruins.
mas a moça era quase inocente.
com seus brincos brancos, do tamanho de bolinhas de gude, bem destacados pelos cabelos negros, continuava ali na praça sentada no banco, olhando pra fonte que jorrava, e pelo tempo que lá estivera,  talvez esperasse alguma resposta coerente dessa vez.
nada veio.
a moça não expressava nada em seu rosto. nenhuma sensação.
mas seus olhos eram sinceros, e olhando a fundo,  podia se ver um cansaço neles.
e esses olhos puxavam a vontade imensa de abraça-la.
mas o que dizer nesse abraço?
não. melhor passar direto.
ela está cansada.

# 169

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e dentro dele cabia um mundo todo.
mas esse mundo não podia ser revelado, por conta de todo o caos que traria junto...
daí vivia nele, construindo seus castelos de vento, viajando pelos caminhos perigosos e deliciosos justamente pelo perigo, e amando tudo o que não era correto, ou que assim não parecia.

e o garoto às vezes deixava parte desse mundo aparecer vez ou outra, sobretudo na lua cheia, deixando cair por terra toda aquela tentativa enorme de disfarçar a existência de seu caos interior..

mas era descontrole a palavra, o nome da coisa que o dominava. e ele ali, lutava contra essa indocibilidade, contra essa rebeldia involuntária, e em vão era a luta, porque ele demonstrava àqueles que não devia o que estava tentando ocultar.

há muito o moço se esforçava pra mascarar aquilo tudo, tentando até forjar uma falsa frieza, e até que estava tendo sucesso nessa tentativa, mas vem a lua e blá... joga tudo por terra.

e dentro dele já não cabia mais o mundo, porque esse mundo transbordava.