quarta-feira, 28 de maio de 2008

# 117

::


e lá atrás, antes de se tornar amarga em razão das asperezas que a vida lhe trouxe, ela gostava de sentar-se à beira da calçada pra procurar as pedras brilhantes no meio dos paralelepípedos da rua.

achava poucas, é verdade, mas as colhia e colocava naquele pote grande de maionese que uma vez ganhara da mãe, com um laço e a pintura de um coração em seu vidro. dizia que um dia encheria até a metade o pote com as minúsculas pedrinhas, e então colocaria água de nascente e um peixe dourado, que chamaria-se Jasmim.

e assim seus dias seguiam-se, a menina na calçada e a procura das pedrinhas que eram difíceis de encontrar. mal chegara aos 3 dedos do pote quando começaram as chuvas.

e nessa época, não era bom que as crianças brincassem na rua, nem nos estios, calçadas de galochas. e nesse ponto, sua mãe, embora ausente na maior parte da vida, era rigosa. não podia sair.

ao fim das chuvas, o progresso se mostrara.

não havia mais paralelepípedos. a rua agora era de asfalto. liso, seco e cinza. não havia cor, e nem sinais de pedrinhas brilhantes, porque essas se escondiam nos vãos dos paralelépidos.

assim, o fim das chuvas foi também o fim da caçada, e a menina não mais se sentou na calçada da rua, e nem mais teve seu peixe Jasmim.

a chuva não lavou só a simplicidade daquele lugar, deixando o caminho limpo pro progresso cinza.
a chuva lavou também os sonhos da menina.


segunda-feira, 26 de maio de 2008

# 116

::


shhhh... sussurrou a moça de verde, pedindo um silêncio de um instante.
o instante era dela, naqueles dias de tentar se preservar.
do quê, ela ainda não sabia. e talvez nem quisesse saber. só se sentia parte demais do mundo, e não era tempo disso.
soltou o dedo do lábio nu, sem batom, que ainda estava ali estacionado como que marcando o tempo de não ter palavra, e de olhos fechados, ergueu a cabeça de leve, mas tão de leve, que quase não se notaria, se houvesse alguém ali, e a respiração se fez forte.

ela pensou em soltar as raízes, e deu um salto rápido e baixo, como se fosse só pra mostrar que não tinha ligação qualquer com o chão.

e de olhos fechados, e ainda em silêncio, sentiu-se sua, e tão somente sua.
e mesmo que houvesse alguém, não a teria. só pousaria do lado, e a acompanharia sendo alguém, não parte dela. conseguiu se completar.

e assim, no instante de um vôo silencioso, formado de um salto de olhos fechados, ela não era mais de ninguém, nem do mundo. era só dela. só dela.

sábado, 24 de maio de 2008

# 115

::  pequenas solidões cotidianas.


e lá se ia mais um dia.
o moço acorda, abre o olho, e procura pelos óculos.
não se lembra bem onde os deixou. estava bêbado quando foi dormir.
talvez pra fugir de si mesmo, ou das vozes que não se calavam em sua cabeça, tomou por companhia um copo de vodka e as paredes brancas.
nada na tv o atraía, e não queria raciocinar demais com seus dvds, quase todos tristes, então contentou-se em encarar a parede cor de pérola e o copo de vodka, que encheu-se repetidamente aquela noite toda.
não se lembrava a hora em que dormiu.e nem se sentia melhor. a noite havia sido dolorosa, sua própria companhia era sua maior dor.
e quando bêbada, era ainda mais feroz, o confrontando com aquelas verdades sinceras e tristes, que não queria ter conhecimento.
a amnésia alcóolica não funcionou dessa vez. lembrava-se de tudo, infelizmente.
com os óculos finalmente encontrados, levanta-se, procura os chinelos azuis, e a cabeça dói.
dá bom dia pras flores da janela. e encara a casa vazia.
faz tempo que não tem companhia ali. e mesmo com flores, peixes e ar, se sente só.
aliás, se sente só quase o tempo todo, mesmo quando envolto dos amigos.
porque a solidão tem várias formas, e vários sentidos.
se sente só, abandonado por si mesmo.
e vive às voltas com as pequenas solidões cotidianas.

segunda-feira, 12 de maio de 2008

# 114

:: do calor nas mãos com o friozinho do outono


e de um dia pro outro fez-se o frio.
depois e uma tarde em que foi preciso afrouxar e dobrar as mangas da camisa social azul clara, o moço precisou, conforme a noite ia nascendo e trazendo um sopro mais frio que dos últimos dias, tornar a estendê-las e abotoar até, pra ver se continha o frio que começava a bater.

finalmente o outono mostrava sua cara, ainda não trazendo muitas quedas de folhas - o que é um espetáculo de poesia natural - mas já abraçando a cidade com aquele frio de dormir de edredon.

o moço até que gostava desse tempo frio - desde que sem chuva - mas não achava muito confortável a sensação de suas mãos congeladas e nem de seus pés com frio. nesse caso preferia o tempo quente. ou pelo menos um aquecimento de mãos alheias em suas mãos.

e no cair da noite, em casa, enquanto o frio esquentava o seu estar só, enquanto não tinha a seu alcance as mãos que esperava, aquecia no fogão a água, entornava em uma xícara com um sachê de chá de hortelã e assim, segurando a porcelana quase que num abraço, sentia o calor nas suas mãos, enquanto assistia a um programa qualquer na tv.

.

domingo, 11 de maio de 2008

# 113

::


muito se discute vida afora sobre o que é bom e o que é ruim.
sobre o que é fácil e difícil.
sobre o que é bonito e o que é feio.
e por fim, sobre a associação disso tudo.

pois bem.

o que é bonito não é fácil, e nem sempre é bom.
o que é feio não é ruim, e nem sempre é fácil.
o que é ruim não é difícil, e nem sempre é feio.

aí me cansei de tantas associações.
fica parecendo aqueles jogos de ligar que fazia quando tinha seis anos.
não.

a única conclusão sobre isso dos útimos dias, a que eu me permito pensar é que o que é bom, não é fácil, e não é feio, só exige paciência e uma placa de reserva.

a dificuldade nesse caso específico só aguça os sentidos, deixando no ar um certo charme e uma vontade de testar os limites das decisões inabaláveis.

as cartas estão nas mesas.
os abraços grandes estão dados.

agora é sentar na porta pra tomar ar no frio.
mesmo que o ar não esteja faltando lá dentro.

sexta-feira, 9 de maio de 2008

# 112

::

e ela se assustava cada vez mais com a capacidade do mundo de problematizar as coisas simples.

- nussa, como é que pode gente?

a maioria das chuvas podem ser entendidas como um monte de pingo d'água caindo do céu.. mas não.. é preferível que soem como tempestades.. sei lá.. é mais catastrófico, dramático.. quase mexicano.

o tempo começa a esfriar e você já vê cachecóis, gorros, e um verdadeiro artefato fornístico envolvendo as pessoas.. pôxa.. cadê aquela sensação gostosa do frio tocando a pele?
e aquele arrepio que invoca um abraço.. ah nem..